sexta-feira, 15 de agosto de 2008

O canto da louca desconhecida - I

acrílico sobre tela by Sonia Alves Dias

Parada no umbral da porta - que não mais existia , no topo dos degraus que subiam aleatoriamente para o céu , uma imagem flutuante e assustadora. Os cabelos selváticos , voavam como se fossem parte de uma tempestade. Os olhos esgazeados saltavam da órbita ocular . As mãos longas esticadas, apontavam em minha direção como se proferissem uma maldição , convidando-me para entrar . Apesar da aparência de louca, com suas vestes brancas rasgadas, o sorriso mal formado na boca vermelha, eu sabia quem ela era e podia jurar que...

... estava à sua espera.

O canto da louca desconhecida - II

acrílico sobre tela (fragmento) by Sonia Alves Dias

* * *


Entrei naquela casa oca, levemente enjoada. No ar, um cheiro estranho, invadia minhas narinas e incomodava os sentidos. Os cantos eram marcados por móveis ausentes. No centro, um amontoado de papéis pardos e correspondências antigas, largados ao léu. Em sua aparente loucura, a mulher gesticulava e falava palavras desconexas , frases sem sentido "eles estão chegando e eu preciso me esconder rápido" – eles quem ? – "preciso fechar as portas muito bem fechadas " – que portas ? – "os comunistas vão tomar tudo ..." – comunistas ? – Eu não entendia o que estava havendo, o que ela queria me dizer, sabia apenas que deveria ficar ao lado dela...


protegida pela sua loucura.

O canto da louca desconhecida - III

acrílico sobre tela (fragmento) by Sonia Alves Dias

Vertigem. Roda Gigante. Carrossel em caixinha de música antiga. As imagens intercaladas , marcadas pelas palavras da louca me ensurdeciam. Meu corpo suava frio e a sensação que me inundava era de que a sala pequena não me cabia, por isso eu precisava caminhar pelo teto, me arrastando pelas paredes. As ruas lá foram, pareciam mais escuras, não havia portas abertas - nem fechadas... não havia portas em lugar nenhum...


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O canto da louca desconhecida - IV

acrílico sobre tela (fragmento) by Sonia Alves Dias


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Estou com uma chave antiga presa no pescoço , preciso achar uma porta fechada... preciso de uma porta, urgente.
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O canto da louca desconhecida - V

Acrílico sobre tela (fragmento) by Sônia Alves Dias


Vou tateando teto, tateando chão. A louca agora é um vulto que se esconde atrás de uma grade na janela. Seus cabelos selvagens voam e ela esgueira-se sorrateiramente pelos cantos vazios. Por entre sombras que gargalham ironicamente ela ... desliza, escorre, desaparece.

Um sino toca. Um grito estridente rasga a escuridão. As mãos dela estão presas às minhas. Não tento me soltar, quero apenas uma porta para abrir. A rua está dentro da casa. Corremos em círculos, de cócoras, de joelhos. Escorremos pelo piso frio, pelos vãos.

"Eles chegaram!"
- ela grita -

O canto da louca desconhecida - VI

Acrílico sobre tela (fragmento) by Sônia Alves Dias


Grito também e sigo-a desorientadamente. Corremos para todos os lugares, sem destino certo. Perdemo-nos em ruas sem fim. As ruas se confundem, entre brechas de janelas e corredores vazios. Vejo homens chegando armados com bandeiras vermelhas. Fico desesperada e procuro saídas imaginárias. Tudo é caos. Mas, a louca em seu canto, com olhos esbugalhados, gargalha. Eu sei que as ruas estão dentro da casa, sei que a casa está cercada e eu estou presa dentro dela. E, por entre ruas de pedras e ruas de terras, madeiras em assoalhos lisos nos levam involuntariamente para uma calçada de flores mortas.

O canto da louca desconhecida - VII

Acrílico sobre tela (fragmento) by Sônia Alves Dias

Corremos . Mas, meus pés aprisionados por pesadas correntes , apodrecem como madeira velha. Caio e não consigo me levantar. Grito, com todas as forças do meu pulmão e o sol invade a noite sem razão aparente . Agora todos os caminhos estão livres, e a rua está fora da casa, e eu estou sozinha dentro dela. Sinto muito frio. Tremo. Os pêlos do meu corpo se eriçam, ficam à espreita, fecham-se como espadas sobre meu corpo desnudo.

O canto da louca desconhecida - VIII

Acrílico sobre tela (fragmento) by Sônia Alves Dias

Muros fechados, eu vejo. Por entre as pálpebras, chove e eu me derramo convulsivamente. Fujo pra fora de casa e, ruas sem sinalização, me conduzem à um labirinto onde minhas veias são minhas únicas rotas. Um homem me persegue implacavelmente , pois precisa me entregar algo... ( o que seria ? não sei... preciso fugir dele, não quero receber o que ele precisa me entregar! preciso fugir incessantemente ) . Quebro um vidro de um carro parado. Rasgo a veia do meu pescoço. O vermelho toma conta do ar, me tinge de escarlate fátuo. Sinto-me sufocar. Enfio os dedos entre a fina pele e as articulações e puxo todos os nervos para fora do meu corpo.A louca aparece indignada, em sua brancura infernal , em seu quintal extenso, com ervas daninhas ao lado do passeio descuidado. Espirro sangue, por todos os cantos. Há cor demais agora, entre nós. Ela tenta me arrastar pelos cabelos , que estavam cuidadosamente penteados e partidos ao meio , numa única trança sem nó.

O canto da louca desconhecida - IX

Acrílico sobre tela (fragmento) by Sônia Alves Dias

"Meus cabelos estão tão bonitos, não quero despenteá-los"
penso vaidosamente.

O canto da louca desconhecida - X

Acrílico sobre tela (fragmento) by Sônia Alves Dias

Com os nervos expostos, fujo. Ela se agarra em minhas tranças e foge comigo. Somos siamesas, percebo ao passarmos por um espelho. Volto lentamente. Observo-a, observo-me. Louca eu, me pareço. Louca ela, tenho certeza. Como nos tornamos siamesas, não saberia explicar. Porém, em determinado momento, nos transformamos em uma só pessoa e tínhamos o mesmo olhar, o mesmo andar, a mesma altura, os mesmos pensamentos , os mesmos movimentos e a mesma loucura.

O canto da louca desconhecida - XI

Acrílico sobre tela (fragmento) by Sônia Alves Dias

Eu era ela no inverso do espelho.

O canto da louca desconhecida - XII

Acrílico sobre tela (fragmento) by Sônia Alves Dias

Minhas tranças soltaram-se e meus cabelos confinaram minha visão. Mas, por entre eles... eu podia ver,
num poste de cimento – uma luz bruxuleante...
numa árvore sombria – nenhum folha –
somente galhos secos chorosos...

O canto da louca desconhecida - XIII

Acrílico sobre tela (fragmento) by Sônia Alves Dias


As luzes foram diminuindo cada vez mais, os galhos abriram os braços e as árvores voaram pelo céu escuro.

O canto da louca desconhecida - XIV

Acrílico sobre tela (fragmento) by Sônia Alves Dias

As ruas transformavam-se em rios, que iam sendo desfeitos conforme passávamos. Num estrondo assustador , um relâmpago cortou o céu. Senti o sangue coalhado, formando desenhos em minha pele desnuda. Várias figuras transbordavam sentimentos, várias imagens desconexas, entravam e saiam do meu campo de visão.

O canto da louca desconhecida - XV

Acrílico sobre tela (fragmento) by Sônia Alves Dias

Ao pisar sobre uma poça d´água percebi que era uma garota novamente que, ingenuamente, sorria com um dedo na boca e um cata-vento na mão. O sangue, maçã-do-amor, me dava vontade de lamber-me. E, como se isto fosse um pecado imperdoável, levantei os olhos para o alto e vi...

O canto da louca desconhecida - XVI


Acrílico sobre tela (fragmento) by Sônia Alves Dias



...parada no umbral da minha porta - no topo dos degraus que aleatoriamente me conduziriam ao céu , uma imagem flutuante e assustadora. Os cabelos emaranhados , pesavam como se fossem o fim de uma tempestade. Os olhos esgazeados afundados desmanchavam-se na órbita ocular . As mãos senis esticadas, apontavam em minha direção como se concretizassem uma maldição. As vestes brancas rasgadas, pareciam o rufar de um pássaro selvagem. Apesar da aparência de louca ... eu não tive medo de subir até onde ela me esperava... e entrei na sala branca com seus cantos vazios , marcados por pessoas ausentes...

O canto da louca desconhecida - XVII

Acrílico sobre tela (fragmento) by Sônia Alves Dias


No vão de uma porta aberta, numa caixinha de música antiga, um carrossel começou a girar lentamente ...

O canto da louca desconhecida - XVIII

Acrílico sobre tela (fragmento) by Sônia Alves Dias

... sorrindo, desfiz minhas tranças e lentamente comecei a lamber o umbigo...



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