Foto arquivo pessoal: cama de gato 2010
Eu sei qual foi o primeiro livro que escolhi (não o que li, pois os que li quando era criança, embora ainda os tenha na casa da minha mãe, foram tantos que é difícil saber qual foi o primeiro).
O primeiro livro que escolhi, quando eu tinha apenas 7 anos de idade e frequentava a Biblioteca da Tia Mirthes no Colégio Tenório de Brito foi: RELÍQUIAS DE CASA VELHA, do Machado de Assis.
Pois é, sei que tem gente que vai achar que estou mentindo, mas é a mais pura verdade. Ainda tenho o livro, tenho a história e há uns 3 anos atrás reencontrei sem querer a adorável e silenciosa Tia Mirthes...
Antes de falar do livro vou falar da Tia Mirthes. Ela era da minha altura (da minha altura quando eu tinha 7 anos, ou seja, era uma dona mínima de aproximadamente 1,55m). A voz dela era mais baixa do que a altura, e para ouvi-la a gente ficava num silêncio difícil de imaginar para uma turma de 20 crianças querendo ... ler!).
Terça-feira era dia de Leitura na escola. Então a gente fazia uma fila indiana e cantando as mais diversas canções seguíamos pelo labirinto que era a escola, com suas imensas escadas de mármores até o outro prédio onde ficava a ... shhhh... biblioteca... da Tia Mirthes...
O que a gente não sabia na época é que a biblioteca não era dela. Para nós, ela era a dona de todos aqueles livros e deixava a gente ficar lá... quietinhos... ouvindo as mais lindas estórias até quase adormecer (em alguns dias, a gente realmente cochilava...)
A biblioteca antiga tinha assoalho de madeira que deslizava de tão limpo, a iluminação era baixa e havia dezenas de cadeiras e mesas redondas de madeira bem escura. Ninguém entrava correndo na biblioteca. A gente chegava em fila, a professora batia na porta e a Tia Mirthes vinha nos receber com o sorriso mais meigo do mundo. Ela dizia sempre "Olá crianças, sejam bem-vindas... não precisam correr, tem lugar para todos".
A gente escolhia a mesa que queria com a turminha de sempre (geralmente eram duas turmas de professoras diferentes). Antes de ler qualquer coisa, de escolher qualquer livro, a Tia Mirthes conversava conosco. Baixinho, sempre. O que nós tínhamos lido em casa, o que gostaríamos de ler na escola, o que queríamos que ela lesse naquela tarde... A gente até começava falar todo mundo junto, mas com cuidado ela coordenava o grupo e tudo fluía com naturalidade.
Acredito realmente, que tudo o que sinto quando pego um livro (todas aquelas emoções que brotam do peito e afloram sentimentos perdidos) vem daquela Tia e do meu Pai. Do meu Pai, porque ele era sócio do Círculo do Livro e me entregava o catálogo fechado para eu abrir e viajar por aquele universo e pela Tia Mirthes que me fez ter amor e reverência pelas páginas delicadas, que me fez observar com atenção os desenhos, descobrir as letras garrafais... pela sensibilidade em falar dos personagens, em não nos manipular com maniqueísmos baratos e fazer com que aquele momento de leitura fosse o dia mais esperado de toda a semana.
Acho mesmo que a Tia Mirthes nem sabe que foi a pessoa mais importante para mim de todos os tempos escolares, nem devia saber do meu olhar de admiração e espanto por aquela doninha de cabelo enrolado, de voz baixinha e toda miudinha que parecia até a Pequena Polegarzinha. Mas, ela foi, foi a pessoa inesquecível da minha infância, foi a minha mestra...
Lá na Biblioteca, diretores gostavam de nos visitar (pensando bem, hoje sei que era tudo um ritual planejado, mas para nós era sempre surpresa). Dona Virgina (a diretora) chegava com nossa professora e todos nós levantávamos e cantávamos uma das tantas canções que a Tia Mirthes nos ensinava, que na minha lembrança era assim:
"bom dia diretora como vai, a nossa amizade nunca sai, nós faremos o possível para sermos bons amigos, bom dia diretora como vai..."
Claro, havia palmas entre cada trecho e ninguém nunca gritava no final. Usávamos camisa com gola branca, meias brancas até o joelho e saia azul marinho. Era tempo de ditadura, mas a gente nem sabia o que aquilo era.
Mas, tudo isso foi só pra falar do meu primeiro livro escolhido (e eu poderia escrever mais umas dez páginas antes de chegar aqui)...
Teve um concurso na escola de Miss Caipirinha (Festa de São João) e quem arrecadasse mais votos podia escolher um livro da biblioteca. Ganhei, assim (mas não foi fácil, a Dulcinéia e a Silvana outras coleguinhas de classe quase ganharam... mas, eu ganhei, no final).
Eu poderia então escolher o meu livro e me senti tão importante, a garota mais importante da escola aos 7 anos, não por ser eleita a Miss Caipirinha, mas... por poder escolher um livro, qualquer um... daquela biblioteca que eu achava linda.
Mas, eu não quis escolher qualquer um e não quis escolher sozinha! Temperamental que eu era, pedi conselhos ao pai, aos amiguinhos, ao meu irmão caçula (e ele falou para eu pegar 3 livrinhos da Polegar, Gulliver e outro que nem lembro... e fiz bico e não quis... porque 3 livrinhos... eram apenas 3 livrinhos... eu queria UM LIVRO DA TIA MIRTHES).
Meu melhor amigo (que na época diziam que éramos namorados) o Walteir, tinha 3 irmãs adultas, uma mais linda e inteligente que a outra. Lembro-me que sempre achava que elas pareciam aquelas moças das capas das revistas. Tinham cabelão, peitos e longas pernas. Eu ia na casa delas sempre que tinha trabalho difícil na escola (e era muito difícil aos 7 anos...) e elas que estavam na faculdade me ajudavam (e lembro-me de ter ganhado muitos concursos escolares com a ajuda delas). A Rosana , que era sardenta e ruivinha e a mais nova das irmãs, me deu o meu primeiro Machado.
Ao "conversar" com ela muito "adultamente" que eu não queria mais um livrinho igual aos que meu pai me dava e que eu tinha em casa... Ela me deu uma sugestão (rindo, me lembro bem, se é que se pode lembrar bem...) "Sôninha, você quer ter um livro que vai ser para sempre ? um livro que você vai ler quando for gente grande ? um livro pra quando você for para faculdade ? " ... claro, que eu queria, eu na primeira série já pensava em como seria na faculdade porque elas eram moças de faculdade... e eu queria ser igualzinha à elas... "então Sôssô você vai ter que conhecer o Machado de Assis". Não , eu não tinha mínima idéia quem era o tal do Machado de Assis e nem gostei do nome, já vou dizendo...
"O Machado, Sô, é o escritor que vão pedir para você ler na faculdade e vão falar tanto dele, que você vai poder contar tudinho quando quiserem saber... porque este vai ser um livro que você não vai esquecer nunca..."
Eu não sabia escrever, tinha lá meus garranchos, minhas idéias próprias sobre a escrita, mas escrever... escrever mesmo, eu não sabia não.. "a pata nada" não podia ser considerada uma redação.
A Rosana anotou o nome do Senhor Machado de Assis numa folha do meu caderno que era todo encapado com um papel lindo e caprichado nas letras e nos rococós e passei a semana inteira esperando pela terça-feira seguinte.
Ao chegar na biblioteca, Miss Caipirinha condecorada, estendi para Tia Mirthes o nome do livro que queria. Ela se espantou, colocou a mãozinha na boca e me perguntou "mas, de onde você tirou este nome Soninha ? para quem é que você vai dar este livro"
- "Para mim , ué " - respondi, toda senhora da situação (já me sentindo a própria da faculdade).
A Tia Mirthes tentou me dissuadir e fiquei triste, porque achei que ela também gostaria que eu lesse um dia o tal do Machado da faculdade... mas, ela me mostrou uns 10 livros (cada um mais lindo que o outro, de estórias infantis fantásticas)... o que diga-se de passagem, encheu meus olhos de vontade, mas o papel na mão dizia que eu precisava guardar o Machado... o de Assis.
Depois de entender que do Machado eu não largaria, trouxe a Tia Mirthes um livro lindo de capa marrom caramelo, das prateleiras que a gente nunca enxergava e (que na época) era um livro gordo e grande. Ao colocar na balcão fez um barulho seco. Meus olhos se arregalaram. Não tinha desenho nenhum na capa e abrindo o livro... milhões de letras sem fim.
A Tia Mirthes ria baixinho, com a leve sensação de que eu estava quase desistindo... Mas, o que fiz foi pegar aquela bíblia e colocar debaixo do braço e sair toda capenga (e altiva!) da sala, me achando a mais inteligente de todas as meninas da primeiro grau.
Este livro virou lenda (na escola, na família e com os amigos).
Amiguinhos da escola queriam saber do livro ... "o proibido" ... é porque os pais disseram que aquele livro era proibido para crianças... Eu tentei fazer com que meu pai lesse para mim a noite, mas ele disse que ali não tinha estória pra criança dormir... Eu mostrei pra Rosana (toda orgulhosa e cúmplice, achando até que agora poderia usar uma daquelas pulseiras lindas delas) o livro da faculdade dela que eu tinha. Ela ficou super feliz com a minha escolha e me disse "...mas, você só vai ler quando for uma moça adulta... guarde-o bem heim ?" . Mas, não usei as pulseiras dela, que pena...
Guardei o livro. Guardo com cuidado. Guardarei para sempre, tenho certeza.
Só li o meu Machado (que ficou guardado e esquecido, mas não perdido) aos 13 anos. O primeiro conto que li foi SEM OLHOS e foi tão desesperador que fiquei muito mal e achei que na faculdade só se lia livros de terror.
O tempo passou e meu Machado só cresceu. Cada vez que pego, sinto nele a passagem do tempo. Me transporto para aqueles tilitares de pulseiras, para aquela educação exemplar que tínhamos, para os sonhos de ser gente grande, para a minha biblioteca da infância, para a Tia Mirthes com toda aquela delicadeza infinita, para o meu Pai um descobridor de tantos mapas, para a minha Mãe (que me contou oralmente todas as estórias que me fizeram ser a menina dos olhos mais curiosos e brilhantes)... e é uma sensação tão boa, tão boa... que não há palavras que possam descrever.
Livro preferido a gente tem vários, mas os que marcam a vida da gente...
... são raros !
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O dia 29 de outubro foi escolhido para ser o “Dia Nacional do Livro” por ser a data de aniversário da fundação da Biblioteca Nacional, que nasceu com a transferência da Real Biblioteca portuguesa para o Brasil.
Seu acervo de 60 mil peças, entre livros, manuscritos, mapas, moedas, medalhas, etc., ficava acomodado nas salas do Hospital da Ordem Terceira do Carmo, no Rio de Janeiro.
A biblioteca foi transferida em 29 de outubro de 1810 e essa passou a ser a data oficial de sua fundação.(Fonte: IBGE)