terça-feira, 27 de abril de 2010

Dormício


Cama de Romeu e Julieta, por Bispo do Rosário


Dormício (ou passagem para outra vida)

Nesta cama, feita de linhas e delírios ela se deitava despida de dias e de noites. Nela, adormecia repleta de pesadelos. Nela, acordava gritando, uivando, chorando, toda arranhada, descabelada, desconfigurada. Nela, se escondia em silêncios invernais. Nela, contava ponto por ponto como se tivesse costurado cada alinhavo, cada babado, cada detalhe imaculadamente sagrado. Nesta cama dura, o mundo não lhe sorria, não lhe cabia e, Romeu, nunca apareceu para morrer envenenado ao seu lado. Nesta cama, de véu e voial, o seu cheiro era antigo, tal qual o de Tutankamon em sua máscara mortuária. Nesta cama de dossel de madeira, ela escondia livros puídos debaixo do colchão, entre as ripas apodrecidas e os lençóis desfeitos pelo tempo. Nela, escrevia, grifava e reescrevia, página por página a sua própria história. Sem convulsões, alucinava. Mas, nesta cama antiga, feita pelo Bispo, não havia maldição. E, sendo a Moça, uma nascida no dia do Dormício, mais tarde celebrado como Assunção de Nossa Senhora, deveria ser sim, a mais católica e fervorosa das Santas Moças de Todos os Tempos. Mas, não era. E, no Rosário do Bispo se fiava. Louca, não, mas feito retrós de linha, se enrolava e desenrolava em querências e ardências, inquietações e motins, fazendo a si mesma, perguntas em forma de cavalo-marinho. Até que exaurida, adormecia, na cama que fora feita para a Julieta do Romeu.

5 comentários:

Rodrigo disse...

O mais bonito do amor é isso: sacralizar o tempo nos detalhes mais simples do cotidiano. É amor que se multiplica até nos detalhes mais secos do esquecimento.

Lindo post. Linda.
Rodrigo

Anônimo disse...

nossa, que blog linnnndooo muito lindo mesmo. beijos, caroline

Juan Moravagine Carneiro disse...

Intenso, sedutor, perfeito!

Anônimo disse...

Re-lembrei de Gerald Thomas em um café. Ele dizia que Romeu e Julieta era uma história de "fda." e não de amor. rs

Marcantonio disse...

Texto de tantas camadas! Muito bonito. Há anos (tantos!) vi no MAM do Rio uma exposição sobre Bispo. Uma experiência bela e perturbadora. Desde então desconfio que a verdadeira arte é feita para o esquecimento, sem testemunhas, mesmo que se pretenda com ela inventariar o mundo. É quando se mostra essencial, com "cada detalhe imaculadamente sagrado". Feita para Deus ou para o nada. Frutos e florescências de uma loucura tornada sã em sua própria lógica.

Abraço.