quinta-feira, 10 de setembro de 2009

O caos reina

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Anticristo, Lars Von Trier

Por Marcel Plasse

Feito para chocar, “Anticristo” de Lars von Trier já foi chamado de obra-prima e de lixo pornográfico. O filme promove um mergulho lento e exasperante na loucura, é interpretado sem pudor e dirigido sem qualquer freio moral.

Von Trier concebeu “Anticristo” enquanto lutava contra a própria depressão, projetando imagens a partir de um lugar muito escuro de sua mente. Pornografia, sadomasoquismo, mutilação, violência, repulsa, doença, isolamento, psicose, paranóia, morte, culpa, nojo, náusea. “Anticristo” é um caleidoscópio de sensações desagradáveis.

Inspirado na antipatia que nutre por psicoterapeutas, o diretor dinamarquês elegeu como protagonista um psicólogo arrogante, interpretado por Willem Dafoe, que desaprova o tratamento psiquiátrico de sua esposa, após uma tragédia a deixar em colapso. Achando-se mais capacitado para tratá-la, ele corta os psicotrópicos e a leva para o campo, forçando-a a confrontar suas fobias.

Charlotte Gainsbourg vive a mulher, despindo-se de todas as roupas e toda a vaidade. Obcecada por sexo, ela vai perdendo, pouco a pouco, o controle sobre seus impulsos. Até se fundir com a natureza, virar um arquétipo primitivo, ânima, bruxa, Eva, instinto, irracional.

Ela é também a “mater dolorosa”, a mãe das lágrimas, cujo pesar é tão vasto que não pode ser compreendido pela objetividade e racionalização masculina. Quanto mais o homem tenta entendê-la e controlá-la, mais incontrolável e ininteligível ela se torna.

Francesa, filha de malucos beleza (o cantor Serge Gainsbourg e a atriz Jane Birkin), Charlotte parece não temer nada. Já na adolescência encarou um filme sobre pedofilia, contracenando em cenas complicadas com o próprio pai. Tudo em nome da arte – só mesmo no cinema europeu.

A atriz ganhou a Palma de Ouro, no último Festival de Cannes, pela entrega ao papel. Corajosa, deixou-se fotografar como as estrelas pornôs. Em close-up ginecológico. Magra, abatida, ensangüentada, ela passa a maior parte do filme de bunda de fora, mas nunca de forma sexy.

Mesmo assim, é belamente fotografada. “Anticristo” desconcerta com suas imagens.

Para introduzir a história, von Trier abre o filme em preto-e-branco publicitário, câmera lenta, ao som de uma ária, evocando sexo romântico entre seus dois protagonistas. Então, no meio da cena, insere um inesperado plano pornográfico. Ao mesmo tempo, um bebê engatinha para a morte com a leveza de um anúncio de hidratante.

A partir daí, o sexo deixa de ser atraente. Os corpos muito magros ganham aspecto dolorido, como se fossem se machucar ao menor toque. De repente, as mãos pegam chaves inglesas e tesouras.

Os parâmetros do gênero terror fornecem os elementos cenográficos de “Anticristo”. O enredo usa o clichê mais comum do horror contemporâneo: um casal isolado numa cabana na floresta. Mas o vira do avesso. Sem sustos fáceis, sem um psicopata mascarado, apenas a natureza e dois protagonistas sem nome, que se amam e se violentam, vão do sexo explícito à tortura visceral.

O delírio evolui com evocações de pinturas expressionistas e surrealistas. Algumas cenas possuem referências pictóricas assumidas. Às vezes é apenas um canto da imagem que treme, revelando um flerte com o abstrato. Outras vezes é a natureza viva, rastejante, gosmenta, sangrenta e bizarra, que ocupa a tela de cinema em enquadramentos que parecem pintados pelo cineasta.

O tema dialoga com “Repulsa ao Sexo” (1965), suspense psicológico clássico de Roman Polanski, que também tinha a loucura, a paranóia, o isolamento, imagens abstratas e uma mulher irracional.

Mas “Anticristo” também é alegórico. Seu título faz referência bíblica e embute um subtexto relativo ao pecado original. Um casal na natureza primordial, bichos repelentes atrás de cada árvore e a culpa corroendo as entranhas, transformando o que era bom em algo errado.

Ainda é possível remeter o “Anticristo” à figura do próprio von Trier, numa leitura desaforada e irônica do título. Se o chamavam de misógino por pouco, agora ele oferece muito. Se o consideravam meio louco, agora ele se mostra completo.

Não é um filme fácil, não tem um final perfeito e desafia a moral do público, mas como experiência de imersão dos sentidos é inigualável. “Anticristo” afeta a percepção, mexe com o emocional, causa reações físicas. Suas imagens sombrias deixam as salas de cinema muito mais escuras.

Por seu potencial perturbador, “Anticristo” é uma experiência difícil de ser assimilada, ao mesmo tempo em que inspira discussão. Lars von Trier já tinha intrigado os cinéfilos ao fazer “Dogville” com marcas de giz como cenário, mas, por tudo o que seu novo filme contempla, daqui para frente será mais lembrado por ter realizado “Anticristo”.

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