Neste dia (um sábado em 2007) quando Marcelino leu este conto (Totonha) eu passei horas relembrando a fala. Este moço tem uma oralidade lindíssima. Lembra vó antiga, lembra o passado, lembra casa sem televisão, rua com lampião.
Agora eu sei, que ele bebeu da mãe todo este linguajar, estes trejeitos, estas formosuras e ficou mais admirável ainda.
A primeira vez que vi Marcelino (há tantos anos, que parecem décadas! ... lá no Itaú Cultural) eu fui fisgada pelos contos orais dele. Ele falava e não tinha quem falasse junto. Era tudo silêncio, porque aquela voz era tão original, tão distante das que conhecemos e ouvimos diariamente (é marcante, pausada, silábica, longelínea) que é pra parar mesmo, pra atentar os causos, conhecer os personagens, suas histórias.
Marcelino ganhou um Jabuti com este livro (Contos Negreiros) e acho que foi Totonha quem deu viu ?
Totonha - Marcelino Freire
Capim sabe ler? Escrever? Já viu cachorro letrado, científico? Já viu juízo de valor? Em quê? Não quero aprender, dispenso.
Deixa pra gente que é moço. Gente que tem ainda vontade de doutorar. De falar bonito. De salvar vida de pobre. O pobre só precisa ser pobre. E mais nada precisa. Deixa eu, aqui no meu canto. Na boca do fogão é que fico. Tô bem. Já viu fogo ir atrás de sílaba?
O governo me dê o dinheiro da feira. O dente o presidente. E o vale-doce e o vale-lingüiça. Quero ser bem ignorante. Aprender com o vento, ta me entendendo? Demente como um mosquito. Na bosta ali, da cabrita. Que ninguém respeita mais a bosta do que eu. A química.
Tem coisa mais bonita? A geografia do rio mesmo seco, mesmo esculhambado? O risco da poeira? O pó da água? Hein? O que eu vou fazer com essa cartilha? Número?
Só para o prefeito dizer que valeu a pena o esforço? Tem esforço mais esforço que o meu esforço? Todo dia, há tanto tempo, nesse esquecimento. Acordando com o sol. Tem melhor bê-á-bá? Assoletrar se a chuva vem? Se não vem?
Morrer, já sei. Comer, também. De vez em quando, ir atrás de preá, caruá. Roer osso de tatu. Adivinhar quando a coceira é só uma coceira, não uma doença. Tenha santa paciência!
Será que eu preciso mesmo garranchear meu nome? Desenhar só pra mocinha aí ficar contente? Dona professora, que valia tem o meu nome numa folha de papel, me diga honestamente. Coisa mais sem vida é um nome assim, sem gente. Quem está atrás do nome não conta?
No papel, sou menos ninguém do que aqui, no Vale do Jequitinhonha. Pelo menos aqui todo mundo me conhece. Grita, apelida. Vem me chamar de Totonha. Quase não mudo de roupa, quase não mudo de lugar. Sou sempre a mesma pessoa. Que voa.
Para mim, a melhor sabedoria é olhar na cara da pessoa. No focinho de quem for. Não tenho medo de linguagem superior. Deus que me ensinou. Só quero que me deixem sozinha. Eu e minha língua, sim, que só passarinho entende, entende?
Não preciso ler, moça. A mocinha que aprenda. O doutor. O presidente é que precisa saber o que assinou. Eu é que não vou baixar minha cabeça para escrever.
Ah, não vou.
Blogs do Marcelino:
http://marcelinofreire.wordpress.com/
2 comentários:
CAIXA DE PANDORA
Quando criança
Eu falava com os anjos
Enxergava o mundo
Com os olhos da Inocência.
Cresci, tornei-me um homem
Cheio de idéias, metas e planos
Abri minha caixa de Pandora
E só encontrei o engano
Revoltado e sem esperança, lancei-a ao mar
Junto coma a minha frustração
Que calada não se manifestou
E agora, o que fazer?
O passado sepultei,
O presente neguei,
O que dirá o meu futuro?
Arrependido, voltei ao penhasco
Ofegante, a caixa procurei
Por um momento, desesperançoso, orei.
O que eu desejava não acontenceu
Mas uma resposta um anjo me deu:
Revelou-me que sem lutar
Um homem derrotado se torna.
Sem objetivos e sem sonhos:
Sua vida é vazia de glórias.
*Agamenon Troyan
Totonha é uma voz ancestral dos povos bantu, de sua oralitura e das cosmovisões africanas negras na diáspora nas Américas. É assim que a vejo, seu Marcelino! "Saber quer dizer saluba". Axé
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