quarta-feira, 2 de março de 2011

o Leitor-Salteado


Tem notícia que a gente lê que é tão legal, que a gente copia inteira pra não perder nada... esta aqui veio do idelberavelar arroba gmail ponto com que faz O Biscoito Fino e a Massa. Obrigada!

O acontecimento literário do ano: Lançado o Museu do Romance da Eterna
O ano mal começou, mas nenhum acontecimento literário que por ventura tenha lugar nestas plagas poderá se comparar a este. Está disponível em português, com 44 anos de atraso, um dos mais assombrosos livros já escritos. Trata-se do romance mais decisivo e influente de toda a literatura argentina; uma das grandes obras-primas da narrativa do século XX, em qualquer língua; talvez o livro mais anunciado e adiado de todos os tempos; um mito tecido ao longo de meio século de rabiscos esquecidos em quartos de pensão, cafés, bares e bondes. Saiu a tradução do Museu do Romance da Eterna, a invenção genial de Macedonio Fernández (1874-1952), aquele que ninguém menos que Jorge Luis Borges chamava de “meu mestre”.

Macedonio se mudava de pensão a pensão com seu violãozinho e uma mala de anotações, às vezes largando para trás montanhas de papéis em que escrevia, sem se preocupar em publicar, o romance no qual purgava o luto pela morte da mulher Elena. Macedonio leva ao limite o gesto da vanguarda, fazendo da espera pelo romance que nunca se publicará a história mesma que se narra. O resultado são cinquenta e tantos prólogos, onde se arma uma poética invencionista, anti-naturalista do romance. Ali ele brinca com a espera, reflete sobre a escrita, a literatura e a publicação, constrói a figura da mulher ausente e, depois de centenas de páginas e dezenas de anos, chega ao “romance” propriamente dito, que é muito mais curto que os prólogos, e no qual os personagens não parecem seres humanos, e sim seres de papelão, como que num conto de fadas. Acredite: não há nada neste planeta que se assemelhe a este livro.

Ninguém morre no romance, diz Macedonio num dos muitos prólogos, ainda que ele seja imortal, pois ele entendeu que, sendo os personagens gente de fantasia, eles perecem todos ao concluir o relato. Tarefa desnecessária que tomam os autores, com o perigo de esquecimentos e de repetir a morte a algum. Tudo em Macedonio funciona assim, de forma a expor, ao invés de esconder, os mecanismos de produção do texto e a relação com o leitor. Este, aliás, é o grande personagem do Museu. Macedonio elabora uma verdadeira galeria, onde se destacam o Leitor-de-Vitrine, o Leitor-de-Porta, o Leitor-de-Capa, o Leitor-Mínimo (ao qual o autor dedica o Título-Obra), o Leitor Não-Conseguido e, finalmente, o Leitor-Salteado. Para este último, o autor reserva um carinho especial: o livro onde não é necessário saltar nada, pois tudo já vem salteado: Não lhe peço, leitor salteado, desculpas por apresentar-lhe um livro inseguido que, como tal, é uma interrupção para você, que se interrompe sozinho … um livro tão picotado que não houve recurso senão lê-lo seguido, para manter assim desunida a leitura.

As histórias narradas por Jorge Luis Borges sobre Macedonio ao longo dos anos foram compondo um conjunto de mitos que, pouco a pouco, passaram a ser indissociáveis da própria biografia. Eu o imitei até a transcrição, até o apaixonado e devoto plágio, diria Borges no discurso pronunciado no velório de Macedonio, em 1952. Borges repetiria à exaustão que a obra escrita de Macedonio, por mais genial que fosse, era só um pálido reflexo da espontaneidade oral, da invenção conversacional que ele elevou à condição de arte. Macedonio escreveu contos, poemas, romances, ensaios, tratados, cartas, mas talvez o seu gênero literário por excelência tenha sido o brinde. Nele se desenvolveram alguns dos achados macedonianos que chegariam à condição de clichês, como o célebre faltaram tantas pessoas na sua festa que se faltassem mais algumas não caberia ninguém.

Num desses brindes surgiu outra das obras-happening de Macedonio, sua candidatura humorística à Presidência da Argentina, em 1927. Com bilhetes deixados nos bondes e nos livros das bibliotecas públicas, anúncios irônicos nos jornais, envelopes distribuídos pela cidade com propostas incongruentes e contraditórias, vai se construindo a figura do candidato. A segunda parte do plano incluía a intervenção na cidade com uma série de objetos impossíveis: pentes com dentes dos dois lados, escarradeiras oscilantes, colarinhos desmontáveis (de forma que, ao agarrar um sujeito para começar uma briga, você ficava só com o colarinho), escadas assimétricas, onde cada degrau é de um tamanho etc. Era a política transformada em ficção dadaísta.

Macedonio era, acima de tudo, um inimigo da verossimilhança, do realismo, da ilusão de realidade na arte. Ao invés de buscar o real na ficção, procurava na realidade o seu grão de ficcionalidade constituiva: eu quero que o leitor saiba que está lendo um romance e não vendo um viver, não presenciando 'vida'. No momento em que o leitor caia na Alucinação, ignomínia da arte, eu perdi, não ganhei, leitor. O que quero é mui outra coisa, é ganhá-lo, a ele, de personagem, ou seja, que por um momento ele mesmo acredite não viver.

O primeira edição do Museu é de 1967, quinze anos posterior à morte de Macedonio e mais de meio século posterior às primeiras menções do livro nos brindes macedonianos. Como se trata de romance póstumo compilado a partir de uma papelada esparramada, que inclui dezenas de prólogos, todas as quatro edições—a do Centro Editor de América Latina, já esgotada, a da Corregidor, a da Cátedra e a da Coleção Archivos—são diferentes entre si. Ainda não manuseei a edição brasileira, mas ela parece ser muito bem cuidada. A tradução é de Gênese Andrade e a apresentação é do escritor, editor e tradutor argentino Damián Tabarovsky.
Nada, absolutamente nada que possa acontecer no mercado literário brasileiro este ano terá a importância e a dimensão--eu já ia dizer "transcendência", mas andaram assassinando essa palavra por aí--desta publicação. É o único livro de metafísica do qual você dá gargalhadas do começo ao fim.

Um comentário:

Tamires Viana disse...

Me apaixonei por este livro quando vi, mas ainda nao li, um livro sem partes em branco, desconstruído...