sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Elogio da Madrasta



Novela escrita sob encomenda para um amigo cineasta que coordenava uma coleção de narrativas eróticas, Elogio da Madrasta é um dos pontos mais felizes da obra de Mario Vargas Llosa. Ela é ágil, direta, sem os contrapontos de tempo e espaço que eram marca registrada de sua primeira década criativa. É possível imaginar o deleite com que Vargas Llosa incursionou nessa pequena jóia porque existe uma facilidade de escrita em cada uma de suas páginas: o livro é franco, nada ambicioso, e se presta ao deleite de uma boa estória com ótimos personagens.
Melhor: no esforço de escrever uma novela erótica sem cair na pornografia (temor algo esnobe, certamente), Vargas Llosa incorreu a um conjunto de técnicas que frearam a ação dramática: nunca vemos o embate de corpos com corpos, e sim nos tornamos observadores da imaginação fetichista das personagens. Não há narração direta dos momentos sexuais (a ação é sempre substituída por metáforas): o que existe, na verdade, é o jogo, a apropriação erótica de uma imaginação pela outra. Mais: a invasão da realidade pelo mundo imaginário que a própria vida erótica demanda. Rigoberto e Fonchito, pai e filho, projetam em Lucrécia suas fantasias, e ela participa ativamente dos jogos que lhe propõem.
A estratégia de Vargas Llosa é muito curiosa. O enredo, em si, é simples: Lucrécia acaba de completar 40 anos e é acolhida pelo afilhado que finalmente se rende à sua presença na casa. A aproximação dos dois, no entanto, acaba por torná-los amantes. A partir daí a novela se torna um jogo de olhares entre as quatro personagens: a família mais a empregada Justina. A trajetória de Fonchito - observador no telhado, missivista suicida, jovem corrompido - é uma experiência abertamente livresca que ele reproduz em vida: como se ele mesmo fosse um personagem de um romance amoroso de estórias fatais.
Ao mesmo tempo, a trajetória de Rigoberto é o arco do Eros maduro, supra-alimentado pela "alta cultura": livros, quadros, música, que fazem com que ele viva sua sexualidade de forma fetichista: Lucrécia como um palco onde conjura ao seu cotidiano os signos da cultura que tanto fomenta seu mundo interior. É como se ele só pudesse se apropriar de sua sexualidade por meio de signos culturais que admira, projetando em sua mulher suas paixões intelectuais. Rigoberto é o personagem mais bem acabado de todo livro, enquanto Lucrécia é vista sempre em sua exterioridade.
As descrições dos quadros (que na edição brasileira, ao contrário do original, foram reproduzidas sem cor, o que tira muito do impacto da leitura), os enredos que cria ao redor de seus temas, dimensionam a imaginação de Rigoberto. Nesse sentido, é um livro abertamente masculino, onde Lucrécia e Justina estão ali apenas como um palco para as projeções da imaginação de Rigoberto e, em menor escala, Fonchito.
A literatura erótica tem cultores escassos. E sua tradição é problemática. Não é surpreendente que coleções eróticas, mesmo em países como o Brasil que se orgulham de uma auto-imagem sexualizada, não ganhem força e continuidade. Não apenas a qualidade é questionável, como os autores consagrados - dois caros à Vargas Llosa, os chatos Georges Bataille e Pierre Klossowski - são quase sempre ilegíveis.
Fazem uma mistura insossa de reflexão e dramatismo, interrompem continuamente as narrativas para fazerem reflexões "humanísticas", e levam suas personagens quase sempre para a tara e doença. Eles usam o sexo para pensar o poder, a sociedade; e mesmo que o sexo seja o núcleo duro onde a sociedade se expressa por meio do corpo dos sujeitos sociais, é difícil conjurar a reflexão filosófica, que freia a ação, com o erotismo que, por sua natureza, está sempre em movimento incessante.
As narrativas eróticas sofrem, paradoxalmente, de falta investimento em sua narratividade, na maior parte das vezes. Por esse motivo, grande parte dos livros eróticos é constituída de materiais brutos: manuscritos em cadernos abandonados, coletâneas de cartas e missivas encontradas ao acaso, diários e fragmentos memorialísticos e fichas confessionais. Assumem na própria forma uma estrutura estática, imóvel, como uma maneira de tentar equacionar o desejo ensaístico com o pudor pornográfico.
Talvez parte do problema seja de escrúpulos: o pouco disfarçado temor masculino de entrar sob a pele do feminino; e o temor feminino de escrever sobre o desejo sexual pelos impasses que esse ato promove na construção de uma autoria literária numa sociedade machista. A literatura erótica sofre de falta de variedade de estórias e até mesmo de tipos de personagens - uma estreiteza de abordagem onde o escritor recorrentemente se confina dentro de sua própria experiência quando a vocação essencial do exercício literário é invadir o espaço imaginário de sujeitos cujas vidas estão diametralmente alheias às do próprio escritor.
Quando o assunto é sexo, a experiência de leitura mais convencional sugere oroman à clef e o jogo é de decifrar o que no ficcional corresponde à própria vida do autor do livro. Dessa forma, a própria presença social do escritor (e da escritora) parece constrangê-lo; e a autoria erótica, seguindo essa lógica, para ganhar legitimidade, buscará sempre se relacionar com uma impostura marginal, com o designo de intervenção social, de reforma da moral, dos costumes. Há uma espécie de heroísmo auto-gerado para a escrita erótica como uma estratégia que busca justificar sua presença. Esse impasse, um nó górdio. É como se o gozo, quando adquire na literatura um foco central, catalisasse a potência destrutiva de asfixiar a si mesmo.
É por esse motivo que Elogio da madrasta é tão interessante: assume esse próprio impasse, e ao invés de constranger a fluência da narrativa interrompendo-a com reflexões, cria uma estrutura onde as reflexões ganham um espaço destacado: as descrições dos quadros. Torna a própria interrupção numa maneira de levar a estória adiante.
Apesar de aqui e ali existir perguntas retóricas do narrador que ficam soltas na gramatura textual, o livro é satisfatório ao avançar com humor e malícia sobre a insossa tradição de literatura erótica francesa: Vargas Llosa dá um drible na chatice em sua novela. Ela engaja, envolve; cria uma experiência rica de leitura; e vence, com qualidade, os temores da encomenda. E também abre espaço para o mais ambicioso e matizado Os Cadernos de Don Rigoberto, que também será em breve lançado no Brasil, e onde equaciona o desejo reflexivo reproduzindo, na matéria do romance, ensaios destacados dos próprios cadernos de anotações do protagonista (como a hilária e caricata carta de protesto ao leitor da revista Playboy).
Dessa forma, Elogio da madrasta funda um espaço ficcional revisitado pelo escritor em Os Cadernos de Don Rigoberto e que, de acordo com o próprio Vargas Llosa, ainda terá ainda mais uma continuação, Las cartas de Doña Lucrecia, já anunciada para os próximos anos.
Vinicius Jatobá é jornalista cultural e mestre em Estudos de Literatura pela PUC-Rio. Colaborou em vários suplementos e revistas, e atualmente escreve sobre livros em jornais.


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