sábado, 6 de março de 2010

Eu te trouxe meias pretas...


imagem tecida por Sônia Alves Dias



Não é aqui não





Alguém gritou da balaustrada:                                         
 — Não é aqui não!
Era,  era lá. 
Uma casa antiga, um batente alto,  
era um orquidário. 
Em tudo, uma paisagem velha  
como soem parecer  
essas florestas onde  
as orquídeas pendem  
e os pássaros chegam 
em rota migratória. 
Não procurava pássaros,  
nem rotas,  
nem migrantes, 
nem orquídeas;  
haviam-me dito: 
numa velha casa,  


e sob uma roupa breve,  
os cabelos esquecidos  
porque os espelhos não eram convocados,  
mesmo assim,  
a beleza que sempre 


 eram os olhos, isto, o olhar,                                                


ali,                                               


até.







Convocara sim as testemunhas e o dedo  
porque — foi dito  entre os soluços e os silêncios —  
nem saberíamos catalogá-las, de tantas, as faltas,  
minhas,  muito mais que as naus do catálogo  
dos aqueus, muito mais.
Suave como o entardecer, houvera  um tempo,  
e agora, ali, distante, a ela, eu disse  


[as mãos estavam frias]:






Não vou-te levar sozinha em viagem                 


                                                ilha.
Lá, deserta das outras, te tomarias                 
                                 de ilha e tédio.
Única maldição: sozinha!








Aqui também — ela disse — 
o velho à balaustrada,  
ele grita o tempo todo:                           




    "Não é aqui não!"


Ilha por ilha.
Imaginas que o mandei gritar — contra ti?
Ilha...?!





É no convívio dos espelhos, mulher,
mulheres, que te queres bendita:
o passo da graça, nem que seja
à maneira de desembrulhar teus mortos.


Haverias de te esquecer de ti
porque das outras, 
o Poderoso não falava a sério, acho que não:


Parirás sob o medo!
                    Multiplicados sejam
os sofrimentos que não são.
Verdadeiros, só o tempo-espera,
só o tempo-só.


O resto, tudo volúpia!


Volúpia maior: a invasão da pélvis, os humores — 
e líquido em bolsa rasgada,
uma respiração ofegante,  
como se todos os deuses
de tuas narinas respirassem — 
aonde vais nessa fúria?


O suor do meu rosto, sim, resigno-me!


Não posso fugir sem um espelho!  
(Ela disse)



Sagrar os espelhos, entre todas as mulheres,
                                                  dia e noite,
                                           espelhos, a tua sina.
Eu te trouxe  meias pretas.  
Calça-as.  
Está frio, está noite. 
Lá.
Agora,  gostaria de saber:                        
a quem o velho grita?

E, se quiseres deixar avisado,  
toma o giz, escreve, 
deixa-o à porta da geladeira, mas
o teu, escreve-o: 
                                         


— Fui eu!





Fortaleza, tarde de seca, 15 de maio de 1998
Soares Feitosa


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