"Pensamentos, como cabelos, também acordam despenteados. Naquela faixa-zumbi que vai em slow motion, desde sair da cama, abrir as janelas, avaliar o tempo e calçar os chinelos até o primeiro jato da torneira – feito fios fora de lugar emaranhando-se, encrespam-se, tomam direções inesperadas.Com água, mão, pente, você disciplina cabelos. E pensamentos? Que nem são exatamente pensamentos, mas memórias, farrapos de sonho, um rosto, premonições, fantasias, um nome. E às vezes também não há água, mão, pente, gel ou xampu capazes de domá-los. Acumulando-se cotidianas, as brutalidades nossas de cada dia fazem pouco a pouco alguns recuar – acuados, rejeitados – para as remotas regiões de onde chegaram. Outros como cabelos rebeldes, renegam-se a voltar ao lugar que (com que direito?) determinamos para eles. Feito certas crianças, não se deixam engabelar assim por doce nem figurinha."
Caio Fernando de Abreu - Pequenas Epifânias
Um comentário:
Caio é um tiro no peito...
sempre atenta a pequenas epifanias
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