quinta-feira, 19 de junho de 2008

Um dia desses...

Show Maré-Adriana Calcanhoto-Citibank Hall 06/2008

Uma concha enorme, do lado esquerdo do palco, sem som dentro dela. Adriana vermelha como coral em maré cheia. Cavalos marinhos povoando o céu, mas não voando pelo mar adentro, nem cavalgando pelo fundo azul. As sereias imaginárias dançando notas de calypso, Waly Salomão em cada canto. Concreta esta moça, de letras bem feitas e olhos azuis. Distante de todos, e ao mesmo tempo declamando frases que parecem nos vestir perfeitamente.
Impossível não querer entrelaçar dedos e sussurrar segredos diante de cada nova canção. Sensação daquelas de dejavú. Tudo parece ser minimamente planejado. Calcanhoto não tem muitos rompantes dentro dela. Toda sua fúria é dita comedidamente, pausamente e com meios-sorrisos. Não é fácil encantar assim, e sendo assim ela encanta. Sereia das boas, acredito eu.
Ao sair da coxia, seu movimento não é de mar bravio. Serena e malemolente ela chega com seu olhar de viés. Sauda o público, a casa cheia : "Boa Noite São Paulo. Muito obrigada e boa noite... boa noite... é um prazer estar aqui. Vocês devem achar que eu digo isto em todos os lugares onde vou, e digo mesmo, só que aqui .... é de verdade". Luzes, palmas, gritos, gestos mínimos pra início imediato.
O néon corta o palco de um lado ao outro, verde relâmpago, lua cheia. E a água insiste em ficar lá, parada. E, os cavalos marinhos, permanecem no céu, decalcados. Em movimentos lentos, quase nada, poesia em ré-maior. Cada fim de canção, o corpo projetado pra frente, a canção entre dentes, efeitos marinhos em roupa ondulante.
O choro da cuíca, o violoncelo entre as pernas, um Verão in rock, um samba pra Martnália. O ar quase blasé, Esquadros misturado a Três... Assim Sem Você e assim Sem Saída... um show inteiro de canções novas, canções conhecidas.
Essa moça tem um jeito de comover que assusta. Na boca dela as palavras parecem mais frias, quase cortantes. De fino humor, imagino-a às vezes, presa num poema dos Anjos (do Augusto), aquele que escreveu A Louca "Quando ela passa: - a veste desgrenhada, O cabelo revolto em desalinho, No seu olhar feroz eu adivinho O mistério da dor que a traz penada. Moça, tão moça e já desventurada; Da desdita ferida pelo espinho, Vai morta em vida assim pelo caminho, No sudário de mágoa sepultada. Eu sei a sua história. - Em seu passado Houve um drama d’amor misterioso - O segredo d’um peito torturado - E hoje, para guardar a mágoa oculta, Canta, soluça - coração saudoso, Chora, gargalha, a desgraçada estulta."
Não sei bem o que é, que nela me fascina e me adormenta. Tenho a sensação que dentro dela há algo triste, pois não é possível tal criação sendo feliz em tempo integral. As melodias são quase sempre doridas e as perdas inimagináveis. Mesmo quando ela tenta comer Caetano, a antropofagia não mistifica o prazer. É um tanto quanto, de Teu Nome Mais Secreto... "Cavo e extraio estrelas nuas de tuas constelações cruas"...
E, de dentro dela, parece brotar esta imensidão de imagens, estes fragmentos de memórias, estas cores de Frida que claram cores. Em sua maré, traz Continentino com a escaleta ao fundo, e Medina cálido diante de Lancellotti e de Costa em sons profundos.
Há instantes, que dá uma vontade danada de chorar. Sabe-se lá porque... canto de sereia é assim, chama a gente e não espera para partir. De letra em letra, vamos mapeando nossos sentimentos e nos apropriando de notas e de canções, envoltos pelo mesmo mar, pela mesma areia.
Finda o show com Vambora e a cantarolando baixinho "na cinza das horas... dentro da noite veloz" tenho a sensação de ouvir um poema antigo (de Drummond) que termina assim "Eu não devia te dizer , mas essa lua, mas esse conhaque, botam a gente comovido como o diabo."
Linda e delicada, reverencia o público como se Pequeno Príncipe fosse. E, em minhas lembranças, agora mais do que antes ela é a rosa, não o Príncipe que viaja por espaços siderais, mas a pequena rosa, presa na redoma de vidro e ainda assim capaz de tanta poesia dentro dela.
"Meio mulher, meio peixe, entre o fundo e a beira, e que detém o canto, no sentido de canto primeiro, do nascimento do canto, anterior à palavra - Adriana Calcanhoto"


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