sábado, 31 de maio de 2008

Se...

pincél sobre cortiça by Sônia Alves Dias
e se os olhos dela cantassem uma canção que soasse através de um piano que a levasse ao céu, ou pelos caminhos do inferno ? e se ela quisesse ser um Todo e estivesse submersa ? e se o seu corpo fosse o alicerce do nada ? e se ela quisesse beber um vinho amargo, e sua boca não alcançasse nem um copo d’água para matar a sede ?
e se o seu corpo mutante ganhasse asas e fosse um animal paleontológico que tivesse garras e estivesse preso por fios invisíveis , no meio de um cabelo desgrenhado e como objeto voador não identificado, sem forças cósmicas , caísse num rio ?
e se o rio fosse de Janeiro e no Pão de Açúcar brotasse flores e se os seus cabelos fossem crinas douradas que descessem como cascatas d’águas numa corredeira sem fim ?
e se o fruto que saísse do seu ventre estivesse morto , e há tempos congelado em seu coração amputado, e pendurado estivesse como num matadouro – exposto – com bichos a lhe devorar a alma ?
e se ela navegasse sem rumo e seus braços fossem remos fortes, feitos da melhor madeira – peroba vermelha ? e se ela deixasse que a água a tomasse inteira e ficasse lívida , lírica no grande cálice tombado sagrado ? e se não houvessem escadas que lhe conduzissem as Torres da Terra do Tombo, e se as portas não tivessem chaves, e se Ícaro irado reivindicasse suas asas e diante do sol molhado de larvas incandescentes sentisse prazer em derreter-lhe com todas as penas ?
e se seus cabelos fossem cordas violas, e se o olho do mundo zombasse dela ? e se ela não fosse mais nada ... mais barco mais rio mais ar mais vinho...
e se o copo quebrasse e se o corpo entornasse e se ela no chão se inundasse inteira ?
coletânea pessoal, Entrenoites, Sônia Alves Dias.

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